Sermão da Sexagésima – Parte 1
Sermão da Sexagésima –
P1
Padre António Vieira
Pregado na Capela Real,
no ano de 1655
O texto abaixo é um trecho selecionado do famosíssimo Sermão da Sexagésima do Padre António
Vieira. Li esse texto anos atrás e fiquei admirado com algumas verdades
preciosas nele contida. É raro, muito raro, encontrar um sermão desse nível
atualmente. Já deveria tê-lo posto aqui no blog, mas só lembrei recentemente. Espero
que seja útil para os leitores quanto foi para mim. Li esse texto várias e
várias vezes. Acredito que certos tipos de pessoas ficarão tão impactadas
quanto eu fiquei.
Há outros trechos deste sermão que não são exibidos abaixo.
Creio que divulgarei em outra ocasião. O sermão completo pode ser encontrado no
site: http://bocc.ubi.pt/pag/vieira-antonio-sermao-sexagesima.html. As partes em negrito foram destacadas por mim. Por ora, o fragmento aqui exposto cumpre seu
propósito e responde a uma pergunta: Fazer pouco fruto a palavra de Deus no mundo, procede de qual
princípio: do pregador, do ouvinte, ou de Deus?
II
Semen est verbum Dei
O trigo que semeou o pregador evangélico, diz
Cristo que é a palavra de Deus. Os espinhos, as pedras, o caminho e a terra boa
em que o trigo caiu, são os diversos corações dos homens. Os espinhos são os
corações embaraçados com cuidados, com riquezas, com delícias; e nestes
afoga-se a palavra de Deus. As pedras são os corações duros e obstinados; e
nestes seca-se a palavra de Deus, e se nasce, não cria raízes. Os caminhos são
os corações inquietos e perturbados com a passagem e tropel das coisas do
Mundo, umas que vão, outras que vêm, outras que atravessam, e todas passam; e
nestes é pisada a palavra de Deus, porque a desatendem ou a desprezam.
Finalmente, a terra boa são os corações bons ou os homens de bom coração; e
nestes prende e frutifica a palavra divina, com tanta fecundidade e abundância,
que se colhe cento por um: Et fructum fecit centuplum.
Este grande frutificar da palavra de Deus é o em
que reparo hoje; e é uma dúvida ou admiração que me traz suspenso e confuso,
depois que subo ao púlpito. Se a palavra de Deus é tão eficaz e tão poderosa,
como vemos tão pouco fruto da palavra de Deus? Diz Cristo que a palavra de Deus
frutifica cento por um, e já eu me contentara com que frutificasse um por
cento. Se com cada cem sermões se convertera e emendara um homem, já o Mundo
fora santo. Este argumento de fé, fundado na autoridade de Cristo, se aperta
ainda mais na experiência, comparando os tempos passados com os presentes. Lede
as histórias eclesiásticas, e achá-las-eis todas cheias de admiráveis efeitos da
pregação da palavra de Deus. Tantos pecadores convertidos, tanta mudança de
vida, tanta reformação de costumes; os grandes desprezando as riquezas e
vaidades do Mundo; os reis renunciando os cetros e as coroas; as mocidades e as
gentilezas metendo-se pelos desertos e pelas covas; e hoje? -- Nada disto.
Nunca na Igreja de Deus houve tantas pregações, nem tantos pregadores como
hoje. Pois se tanto se semeia a palavra de Deus, como é tão pouco o fruto? Não
há um homem que em um sermão entre em si e se resolva, não há um moço que se
arrependa, não há um velho que se desengane. Que é isto? Assim como Deus não é
hoje menos onipotente, assim a sua palavra não é hoje menos poderosa do que
dantes era. Pois se a palavra de Deus é tão poderosa; se a palavra de Deus tem
hoje tantos pregadores, porque não vemos hoje nenhum fruto da palavra de Deus?
Esta, tão grande e tão importante dúvida, será a matéria do sermão. Quero
começar pregando-me a mim. A mim será, e também a vós; a mim, para aprender a
pregar; a vós, que aprendais a ouvir.
III
Fazer pouco fruto a palavra de Deus no Mundo, pode
proceder de um de três princípios: ou da parte do pregador, ou da parte do
ouvinte, ou da parte de Deus. Para uma alma se converter por meio de um sermão,
há de haver três concursos: há de concorrer o pregador com a doutrina,
persuadindo; há de concorrer o ouvinte com o entendimento, percebendo; há de
concorrer Deus com a graça, alumiando. Para um homem se ver a si mesmo, são
necessárias três coisas: olhos, espelho e luz. Se tem espelho e é cego, não se
pode ver por falta de olhos; se tem espelho e olhos, e é de noite, não se pode
ver por falta de luz. Logo, há mister luz, há mister espelho e há mister olhos.
Que coisa é a conversão de uma alma, senão entrar um homem dentro em si e ver-se
a si mesmo? Para esta vista são necessários olhos, e necessária luz e é
necessário espelho. O pregador concorre com o espelho, que é a doutrina; Deus
concorre com a luz, que é a graça; o homem concorre com os olhos, que é o
conhecimento. Ora suposto que a conversão das almas por meio da pregação
depende destes três concursos: de Deus, do pregador e do ouvinte, por qual
deles devemos entender que falta? Por parte do ouvinte, ou por parte do
pregador, ou por parte de Deus?
Primeiramente, por parte de Deus, não falta nem
pode faltar. Esta proposição é de fé, definida no Concílio Tridentino, e no
nosso Evangelho a temos. Do trigo que deitou à terra o semeador, uma parte se
logrou e três se perderam. E porque se perderam estas três? -- A primeira
perdeu-se, porque a afogaram os espinhos; a segunda, porque a secaram as
pedras; a terceira, porque a pisaram os homens e a comeram as aves. Isto é o
que diz Cristo; mas notai o que não diz. Não diz que parte alguma daquele trigo
se perdesse por causa do sol ou da chuva. A causa por que ordinariamente se
perdem as sementeiras, é pela desigualdade e pela intemperança dos tempos, ou
porque falta ou sobeja a chuva, ou porque falta ou sobeja o sol. Pois porque
não introduz Cristo na parábola do Evangelho algum trigo que se perdesse por
causa do sol ou da chuva? -- Porque o sol e a chuva são as afluências da parte
do Céu, e deixar de frutificar a semente da palavra de Deus, nunca é por falta
do Céu, sempre é por culpa nossa. Deixará de frutificar a sementeira, ou pelo
embaraço dos espinhos, ou pela dureza das pedras, ou pelos descaminhos dos
caminhos; mas por falta das influências do Céu, isso nunca é nem pode ser.
Sempre Deus está pronto da sua parte, com o sol para aquentar e com a chuva
para regar; com o sol para alumiar e com a chuva para amolecer, se os nossos
corações quiserem: Qui solem suum oriri facit super bonos et malos, et pluit
super justos et injustos. Se Deus dá o seu sol e a sua chuva aos bons e aos
maus; aos maus que se quiserem fazer bons, como a negará? Este ponto é tão
claro que não há para que nos determos em mais prova. Quid debui facere vineae
meae, et non feci? -- disse o mesmo Deus por Isaías.
Sendo, pois, certo que a palavra divina não deixa
de frutificar por parte de Deus, segue-se que ou é por falta do pregador ou por
falta dos ouvintes. Por qual será? Os pregadores deitam a culpa aos ouvintes, mas não é assim.
Se fora por parte dos ouvintes, não fizera a palavra de Deus muito grande
fruto, mas não fazer nenhum fruto e nenhum efeito, não é por parte dos
ouvintes. Provo.
Os ouvintes ou são maus ou são bons; se são bons, faz neles fruto a
palavra de Deus; se são maus, ainda que não faça neles fruto, faz efeito. No Evangelho o temos. O trigo que caiu nos
espinhos, nasceu, mas afogaram-no: Simul exortae spinae suffocaverunt illud. O
trigo que caiu nas pedras, nasceu também, mas secou-se: Et natum aruit. O trigo
que caiu na terra boa, nasceu e frutificou com grande multiplicação: Et natum
fecit fructum centuplum. De maneira que o trigo que caiu na boa terra, nasceu e
frutificou; o trigo que caiu na má terra, não frutificou, mas nasceu; porque a palavra de
Deus é tão funda, que nos bons faz muito fruto e é tão eficaz que nos maus
ainda que não faça fruto, faz efeito;
lançada nos espinhos, não frutificou, mas nasceu até nos espinhos; lançada nas
pedras, não frutificou, mas nasceu até nas pedras. Os piores ouvintes que há na
Igreja de Deus, são as pedras e os espinhos. E porquê? -- Os espinhos por
agudos, as pedras por duras. Ouvintes de entendimentos agudos e ouvintes de
vontades endurecidas são os piores que há. Os ouvintes de entendimentos agudos
são maus ouvintes, porque vêm só a ouvir subtilezas, a esperar galantarias, a
avaliar pensamentos, e às vezes também a picar a quem os não pica. Aliud
cecidit inter spinas: O trigo não picou os espinhos, antes os espinhos o
picaram a ele; e o mesmo sucede cá. Cuidais que o sermão vos picou e vós, e não
é assim; vós sois os que picais o sermão. Por isto são maus ouvintes os de
entendimentos agudos. Mas os de vontades endurecidas ainda são piores, porque
um entendimento agudo pode ferir pelos mesmos fios, e vencer-se uma agudeza com
outra maior; mas contra vontades endurecidas nenhuma coisa aproveita a agudeza,
antes dana mais, porque quanto as setas são mais agudas, tanto mais facilmente
se despontam na pedra. Oh! Deus nos livre de vontades endurecidas, que ainda
são piores que as pedras! A vara de Moisés abrandou as pedras, e não pôde
abrandar uma vontade endurecida: Percutiens virga bis silicem, et egressae sunt
aquae largissimae. Induratum est cor Pharaonis. E com os ouvintes de
entendimentos agudos e os ouvintes de vontades endurecidas serem os mais
rebeldes, é
tanta a força da divina palavra, que, apesar da agudeza, nasce nos espinhos, e
apesar da dureza nasce nas pedras.
Pudéramos argüir ao lavrador do Evangelho de não
cortar os espinhos e de não arrancar as pedras antes de semear, mas de
indústria deixou no campo as pedras e os espinhos, para que se visse a força do
que semeava. É
tanta a força da divina palavra, que, sem cortar nem despontar espinhos, nasce
entre espinhos. É tanta a força da divina palavra, que, sem arrancar nem
abrandar pedras, nasce nas pedras. Corações embaraçados como
espinhos corações secos e duros como pedras, ouvi a palavra de Deus e tende confiança!
Tomai exemplo nessas mesmas pedras e nesses espinhos! Esses espinhos e essas
pedras agora resistem ao semeador do Céu; mas virá tempo em que essas mesmas
pedras o aclamem e esses mesmos espinhos o coroem.
Quando o semeador do Céu deixou o campo, saindo
deste Mundo, as pedras se quebraram para lhe fazerem aclamações, e os espinhos
se teceram para lhe fazerem coroa. E se a palavra de Deus até dos espinhos e das pedras triunfa;
se a palavra de Deus até nas pedras, até nos espinhos nasce; não triunfar dos
alvedrios hoje a palavra de Deus, nem nascer nos corações, não é por culpa, nem
por indisposição dos ouvintes.
Supostas estas duas demonstrações; suposto que o
fruto e efeitos da palavra de Deus, não fica, nem por parte de Deus, nem por
parte dos ouvintes, segue-se por conseqüência clara, que fica por parte do pregador. E assim é. Sabeis, cristãos, porque não faz fruto a palavra de Deus? Por
culpa dos pregadores. Sabeis, pregadores, porque não faz fruto a palavra de
Deus? -- Por culpa nossa.
Até o próximo!
Marconi
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